Cara a cara com J.R. Duran

Quem diria que uma entrevista com o fotógrafo da celebridades me faria refletir sobre violência?

Foi em 2008 que eu entrevistei o fotógrafo JR Duran. Trabalhava na revista Metrópolis, de Alphaville, e ele estava lançando o livro Cadernos Etíopes, com imagens de uma viagem de 20 dias em busca de tribos isoladas na África. 

Não sei vocês, mas eu fiquei bem curiosa pra entender por que um fotógrafo que registrava celebridades nuas e fazia ensaios luxuosos para grandes revistas resolveu se embrenhar em um lugar que me soava perigoso. 

Foi justamente a parte da conversa em que falamos sobre medo e violência que ficou gravada na minha memória. Porque, de fato, eu não tenho a menor ideia de como é estar nesse lugar. E a impressão que me dá é de que tem um perigo a cada esquina. 

Duran tem respostas diretas, sem firulas, e é o tipo de entrevistado que olha pra você. Claro que ele aceitou falar comigo porque queria divulgar o livro (o contato pra entrevista, aliás, foi via editora, a finada CosacNaif). Mas nem por isso se mostrou menos interessado em falar sobre suas aventuras, pensamentos e ideias. 

De minha parte, eu insisti um pouco no papo sobre medo e violência porque os registros fotográficos mostram um lugar muito diferente do que aquele no qual o fotógrafo, no meu imaginário, costumava frequentar. E quando ele me disse que as pessoas lá andavam armadas com fuzis Ak-47 achei tudo ainda mais perigoso….

Essa imagem fecha o livro Caderno Etíopes, do fotógrafo J.R.Duran

À pergunta se ele se sentiu em perigo em algum momento, a resposta foi “não sei”. 

“Eu não sei. A noção que eu tenho é que quem consegue sobreviver em São Paulo ou Rio de Janeiro consegue sobreviver em qualquer lugar do mundo. Todas as cidades são perigosas porque envolvem pessoas do bem e do mal. Acho que quem empreende os códigos das ruas sobrevive em qualquer lugar do mundo”.

Ouvi-lo falar sobre sobreviver em São Paulo me fez pensar. Porque é a cidade onde eu vivo. Pra fazer a entrevista, eu saí da Penha, onde morava, e fui pra Vila Madalena sozinha. Foi uma viagem de metrô, onde me sinto razoavelmente segura, mas ainda assim, se parar pra pensar, é atravessar a cidade, andar por ruas que não conheço, cruzar com centenas de pessoas pelo caminho.  

E não dá pra negar que São Paulo é uma cidade que tem violência. Ainda assim, não vejo ninguém com um fuzil AK-47 no meio da rua. No fim, eu me sinto mais segura aqui, em lugares que conheço, por onde sei andar e me virar, como o metrô. E por isso acho que teria muito mais medo lá na Etiópia, onde o JR Duran não se sentiu em perigo. 

Talvez isso não faça sentido na prática e seja até um pouco de preconceito da minha parte. Aquele preconceito de quem não conhece o lugar e tem um imaginário formado sobre ele. 

E JR Duran me fez pensar ainda mais sobre isso quando disse que achava difícil fazer um trabalho como esse aqui no Brasil. “Talvez porque eu conheça bem mais os costumes, saiba onde posso levar uma tacada ou um tiro”.

Um outro olhar

Entrevista com o fotógrafo JR Duran para a Revista Metrópolis, em 2008, quando ele lançou o livro Cadernos Etíopes

Quando pronunciado, o nome de J.R.Duran é rapidamente relacionado a luxuosos ensaios de moda e nudez. O espanhol da vila de Mataró, uma cidade próxima a Barcelona, que vive no Brasil desde 1970, conquistou um espaço nobre no mundo da fotografia. O que pouca gente sabe é que esse tímido fotógrafo, que prefere não ser fotografado, também gosta de se embrenhar em grotões pelo mundo para registrar aquilo que pouca gente vê. Tem uma paixão especial pela África, onde já esteve várias vezes. Lá, fotografou o deserto da Namíbia, a guerra civil de Angola e caçou gorilas em Ruanda. A última incursão foi pela Etiópia,onde ficou frente a frente com tribos primitivas que vivem à beira de um rio. O resultado desse trabalho é o livro “Cadernos Etíopes”, que acaba de ser lançado pela Cosac Naify, com fotos e textos de Duran.

Longe dos hotéis luxuosos em que costuma se hospedar pelo mundo, Duran caminhou horas com sua câmera pendurada no pescoço,dormiu em acampamentos, navegou por quilômetros em botes, perdeu fotos que, para ele, seriam as melhores e fez outras que o deixaram maravilhado.

Mesmo distante dos estúdios e do glamouroso mundo da moda, Duran questiona os que acham que esse trabalho é muito diferente do que faz no dia-a-dia. Na verdade, a diferença que existe, segundo o fotógrafo, é que nesse caso ele está sozinho, carregando o próprio equipamento.

Na Etiópia, Duran fotografou as tribos que vivem às margens do Rio Omo e brigam por espaço para criar gado. Algumas delas andam armadas com fuzis, como verdadeiros “guerreiros”. Uma aventura que está registrada em livro e que talvez, algum dia, tenha mais detalhes revelados pelas cartas que o fotógrafo costuma mandar a si mesmo dos lugares por onde passa, mas que nunca abre.

O fotógrafo recebeu a reportagem da METROPOLIS em seu estúdio, na Vila Madalena, onde falou sobre a experiência dessa viagem.

Por que você começou a fazer essas viagens de aventura pela África? Encara isso como um trabalho ou um momento de descanso?
Lembro-me que a primeira vez que fui à África, no Quênia, fui fazer uma matéria de moda. Tinha um acampamento e à noite a editora de moda estava de saia e salto alto. Aí eu pensei: “alguma coisa não está combinando”. Naquele mesmo ano, eu voltei para fotografar a Namíbia e comecei a ver a África de uma outra maneira. Na verdade, eu encaro essas viagens como um descobrimento pessoal. Há várias coisas que você aprende nessas situações que pode aplicar na vida prática.

E como foram esses 20 dias na Etiópia?
Quando cheguei, desci do avião em um lugar chamado Ginka e, de lá, a gente saiu em um caminhão abastecido com mil litros de gasolina, que era para durar todos esses dias. Lá, eu ficava em um acampamento, e tinha um guia que possuía pequenas lanchas,nas quais a gente viajava pelo rio. Como é um rio que faz muitos “S”, você gasta 8 horas para fazer cerca de 50 quilômetros. Além do guia, eles têm um esquema em que para cada tribo a gente tem que levar alguém que também faça parte da tribo.

Foi difícil estabelecer contato com essas tribos? Houve algum lugar que tentaram acessar e não conseguiram?
Teve dias em que a gente tentava achar as pessoas e não conseguia nada. Eram distâncias enormes e poucas pessoas. Uma das tribos tinha apenas 1.500 membros. Além disso, muitas dessas tribos brigam entre si. No passado, teve um governo socialista que forneceu armas para todo mundo. Hoje em dia mudou, mas nesse vale as pessoas continuam tendo suas AK-47. E é muito mais fácil apertar o gatilho do que jogar uma lança.

Como foi para você se aproximar dessas pessoas? Você conversava com elas antes?
Não teve muita conversa. A gente chegava e fazia retratos. É engraçado, porque no mundo da moda a gente faz centenas de fotos da mesma coisa para chegar à perfeição. Lá, para mim, talvez na minha ignorância visual, as pessoas estavam perfeitas. Porque era um mundo tão diferente que eu não precisava dessa repetição para ser perfeito, mesmo porque eu não tinha referência nenhuma.

E, para um olhar que fotografa moda e glamour no dia a dia, o que muda?
Nada. A razão de eu ter ido para esse lugar é porque lá as pessoas também têm uma elegância. Cada tribo tem um código para se vestir, usa o cabelo de um jeito diferente, amarram o colar, o lenço e a saia de um jeito. Os temas que sempre me interessaram, seja fotograficamente ou por curiosidade, que são a violência, a nudez e o comportamento das pessoas, estão aqui. O santo espanhol San Juan de La Cruz escreveu que as três tentações do homem são o mundo, o demônio e a carne. E, em um certo momento, quando eu me deparei com os escritos desse santo, percebi que fotografava muito por essas tentações. Ao lado da viagem e da escrita, essa é a minha essência. As pessoas costumam dizer que me conhecem por outros trabalhos, mas talvez seja o contrário, e elas conheçam os meus trabalhos porque por baixo disso existe este tipo de coisa, que é o que me alimenta. Então, é quase como mostrar para as pessoas a origem do meu pensamento.

Você não se sente em perigo em viagens como essas?
Eu não sei. A noção que eu tenho é que quem consegue sobreviver em São Paulo ou Rio de Janeiro consegue sobreviver em qualquer lugar do mundo. Todas as cidades são perigosas, porque envolvem pessoas do bem e do mal. Acho que quem empreende os códigos das ruas sobrevive em qualquer lugar do mundo.

Você se sente um antropólogo fazendo esse trabalho?
Eu não sei. Eu sou um curioso que gosta de viajar. Nasci em uma cidade perto de Barcelona em uma época franquista, cresci até os 15 anos lendo e viajando para fora dos âmbitos familiares ou da minha cidade, só com a imaginação.

Já pensou em fazer um trabalho desse tipo no Brasil?
Sim. Mas é mais fácil montar essas fotos na Etiópia do que no Brasil. Um projeto como esse aqui é mais complicado.

Por que é complicado?
Talvez porque eu conheça bem mais os costumes, saiba onde posso levar uma tacada ou um tiro.