Memento Mori

Em 2016, lendo o livro Os Monges e Eu, de Mary Paterson, fui apresentada ao conceito de Memento Mori, uma palavra latina que significa “lembre-se da morte”. A ideia é ter algo perto de você que te lembre da sua mortalidade e, assim, te ajude a viver melhor o presente. 

No livro, a autora coloca na geladeira de sua casa uma imagem do monge Thich Quang Duck em chamas num cruzamento de Saigon em 1963, durante a Guerra do Vietnã. “Ele me lembra de viver profundamente em cada momento, a única maneira de me sentir verdadeiramente em Casa”, ela diz. 

Lembrei dessa história hoje, quando vi que faz 6 anos que o ator Domingo Montagner faleceu. Na época, eu fiquei profundamente impactada porque ele nasceu e viveu no bairro em que moro. E o velório e enterro aconteceram a poucos quarteirões da minha casa. Naquele dia, ouvi helicópteros a manhã inteira e vi na televisão aquelas ruas pelas quais eu passo cotidianamente. 

E quando algo acontece perto da gente, parece que fica mais real. A proximidade traz um senso de realidade maior. Lembrando daquela tragédia, dá pra dizer que Domingos pode ser um Memento Mori, nos lembrando de viver o hoje em toda sua plenitude.

A seguir, deixo o texto que escrevi na época: 

Domingos, você me fez colocar tudo em perspectiva

É isso mesmo. A sua trágica morte me fez olhar para o espelho e refletir. Refletir sobre a vida. Fiquei absolutamente chocada com a notícia. E senti muito. Muito mesmo. A semelhança entre ficção e realidade e o fato de você estar no auge, fazendo aquela novela linda, contribuiu para isso, claro. Mas o peso ficou maior pelo fato de você ter vivido boa parte da sua vida a poucos quarteirões de onde eu moro hoje. A casa que você morou e o bar que você frequentava são parte do meu cotidiano.

No sábado, o helicóptero da TV que fazia a cobertura do seu funeral me fez lembrar de você durante toda a manhã. Sim, porque o teatro em que você foi velado e o cemitério no qual foi sepultado também ficam a poucos quarteirões da minha casa. Essa proximidade deixou tudo mais real, mais humano e mais difícil.

O bairro é um lugar que une as pessoas. A gente se sente mais próximo, um quase amigo, um vizinho, aquela pessoa com a qual se pode cruzar na rua a qualquer momento e dizer um “oi”. E quando uma tragédia desse tamanho acontece com alguém tão próximo, a gente para e pensa. E coloca tudo, mas tudo mesmo, em perspectiva. Talvez seja por isso que eu tenha sentido tanto a sua partida.

Ao mesmo tempo em que lidava com a comoção pela sua morte, estava lendo um livro sobre budismo. Não foram poucas as passagens que me fizeram pensar em você. Muitas falam sobre a impermanência e a necessidade de se aprender com ela, sempre com tranquilidade, aceitando aquilo que não podemos modificar. Acho que é isso. Por alguma razão que não sei explicar, a sua morte me fez olhar com profundidade para essa impermanência, para a necessidade de viver com plenitude, para a urgência de não desperdiçar um segundo sequer, afinal, o próximo segundo já é futuro, sobre o qual não sabemos nada. Não que eu não soubesse disso. Afinal, já tive muitos momentos na vida que me jogaram na cara essa impermanência. Mas, com o tempo, esquecemos o impacto e seguimos caminhando, até porque, senão, a vida ficaria mais difícil.

Mas agora, Domingos, parece que algo mudou. O tempo se tornou mais urgente. Essa tragédia que você viveu e que, apesar da distância, mexeu com a rotina do bairro onde eu moro, despertou algo forte. Passando pelas ruas que você conheceu tão bem, e que eu frequento quase diariamente para fazer as coisas prosaicas do meu dia, me lembro de você e dessa mortalidade. E penso que não há tempo a perder. Talvez eu possa dizer que você é meu Memento Mori, um conceito que diz “lembra-te que és mortal”.

Você, Domingos, foi lembrado por seus amigos como um homem bom e generoso. E apesar de não termos nos conhecido, acho que eles estavam sendo absolutamente sinceros. Todos pareceram tão genuínos ao falar de você que a situação ficou ainda mais surreal. Afinal, com tantas pessoas ruins no mundo, porque precisamos nos despedir de um homem bom? Aqui, eu teria que entrar na seara das coisas espirituais, e não quero. Mas preciso dizer uma coisa: não me parece justo. Só que a vida nem sempre é justa. E ponto.

Eu espero que a sua família e os seus amigos consigam encontrar um caminho de paz e tranquilidade. Da minha parte, vou levar você como meu Memento Mori. Fique em paz!