Entrevista com designer Hugo França feita para a revista Porte Paisagem Urbana em 2014
Quando foi morar em Trancoso, na Bahia, o designer gaúcho Hugo França abriu seus olhos para um mundo até então desconhecido: o da reutilização de madeira para a criação de peças de design. Mas não se trata de pegar a madeira que já foi usada, tratá-la e trabalhá-la até que se transforme em mesas ou cadeiras. Hugo aprendeu a observar a natureza e descobrir, nas árvores caídas e muitas vezes dadas como perdidas, formas que poderiam se transformar em objetos. Assim, ele criou um trabalho totalmente autoral e único, diferente de tudo que vemos por aí. A criação de Hugo França começa na mata, onde ele e sua equipe analisam os resíduos de árvores e avaliam se a madeira pode ou não ser utilizada. Depois, esse material vai para seus ateliês, onde é trabalhado até virar o que ele chama de “esculturas mobiliárias”. Agora, o designer está empenhado em transformar árvores caídas na cidade em mobiliário público. Neste ano, foi inaugurado um brinquedo no Parque Burle Marx feito com uma grande árvore que caiu por lá. Conheça, a seguir, um pouco mais sobre a história e o trabalho de Hugo França.
Como começou esse trabalho de “reaproveitamento” da madeira?
Foi em Trancoso, durante a convivência com os índios Pataxós, que produziam suas próprias canoas e ferramentas com a madeira da floresta. Foi ali que conheci as propriedades do Pequi, minha principal matéria prima de trabalho. Essa madeira é oleosa, o que a torna mais resistente à água e traz muito mais durabilidade para minhas criações, que ficam livres de cupins.
Quando você começou esse trabalho, no final dos anos 1980, não se falava tanto em sustentabilidade. Você já tinha essa consciência?
Tudo começou com a preocupação. Em Trancoso, assisti ao final da grande devastação da Mata Atlântica no sul da Bahia. Era tão absurdo! Eu vi a quantidade de resíduos que as queimadas e extrações irresponsáveis deixaram para trás e entendi que aquilo também era um recurso, talvez um meio eficaz de falar sobre a importância do uso consciente do que a natureza oferece.
Como começa o seu trabalho de criação?
Começamos com a busca da raiz de Pequi na mata. Essa peça é levada para um de nossos ateliês em Trancoso, de caminhão. Em alguns casos, já visualizamos formas para essas peças na hora. Em outros, isso leva um tempo. O próximo passo é idealizar o produto e fazer as primeiras marcações com giz. Em seguida, começa o trabalho com a motosserra, um trabalho muito delicado e minucioso, no qual damos as primeiras formas à madeira. Depois, vem o acabamento, quando “lapidamos” alguns poucos detalhes, lavamos, lixamos e passamos verniz. Daí, a peça está pronta.
Você se embrenha nas matas. Já passou por alguma situação de perigo?
Quando se entra na mata, a aventura é certa. Mas nunca tivemos grandes problemas ou riscos.
É sempre a matéria-prima que determina a peça que será feita ou há casos em que você pensa a peça e sai em busca do material?
O que mais me inspira são as formas das árvores. Interfiro o mínimo possível para que a memória de cada árvore permaneça. Cada novo tronco ou raiz é uma nova história. Não costumo fazer projetos antes de analisar a madeira com que vou trabalhar. A ideia do desenho surge a partir do material. É ele que me instiga, que estimula meu olhar e meu raciocínio.
Quais são as madeiras que você mais utiliza?
Praticamente 90% do meu trabalho é feito com o Pequi Vinagreiro, espécie que ocorre apenas na região da Mata Atlântica, entre o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo. A primeira característica que gosto de apontar sobre o pequi é sua longevidade. A árvore se torna adulta com 200 anos e pode viver até 1200 anos, algo raro na natureza. Lidar com esta madeira ancestral é um trabalho arqueológico para mim. Além disso, no universo de espécies de árvores da Mata Atlântica (temos em torno de 3000 diferentes), o pequi apresenta uma mistura de características que o torna inútil para a movelaria tradicional: texturas, buracos, formas. E exige um manuseio muito específico; não é possível trabalhar com o pequi utilizando métodos tradicionais. Eu gosto de explorar caminhos contrários ao da indústria. Apesar disso, sempre penso em trabalhar com novas madeiras, pois o Mobiliário Público é a utilização de todas as espécies de árvores das cidades.
Este ano foi inaugurado um brinquedo no Parque Burle Marx, feito com uma árvore que caiu. Você acha que as árvores de São Paulo que são condenadas poderiam ter algum outro destino que não fosse o lixo?
Com certeza. Neste momento, estou focado no reaproveitamento de resíduos lenhosos urbanos para criação de mobiliário público. Não me conformo em ver as árvores condenadas sendo descartadas pelo poder público ao redor do mundo. Quero muito difundir esse projeto e ter um sistema de criação de nova mão de obra para esse trabalho.
O que determina se uma madeira pode ou não ser reutilizada?
Já sabemos na hora se a madeira está apta para ser utilizada. A presença de bichos e partes ocas mostra que a madeira não está apta para o trabalho. Quando a madeira está saudável, seu acabamento é apenas lixa e verniz.
Você considera que o seu trabalho de design se aproxima da arte?
Minha obra fica no limiar entre o design e a arte. Adotei um termo criado por Ethel Leon para falar das minhas peças: “esculturas mobiliárias”, pela precisão com que explica sua poética.
O principal objetivo das minhas obras é ajudar a despertar a consciência ecológica através de criações que preservam as formas orgânicas e texturas das árvores. Minha interferência é mínima, realizada após diálogo criativo que estabeleço com a matéria-prima.